Balada da Praia dos Cães - José Cardoso Pires
António Góis, 28.07.20
…um dos quais, cão de fora e jamais identificado, foi aquele que chamou a atenção dum pescador local e o levou à descoberta do cadáver. Este cão parece que tinha sobrancelhas amarelas, que é coisa de rafeiro lusitano. Provavelmente andava à divina pela costa e como tal deve ter pernoitado na zona dos banhistas que nesta época do ano se resume a algumas armações de ferro e pavilhões a hibernar.
Pelo terreno encontravam‑se restos de férias, farrapos de jornais soterrados no areal, um sapato naufragado, embalagens perdidas; a bóia de socorros a náufragos sempre à vista, dia e noite; refugos de marés vivas; o conhecido cartaz PORTUGAL, Europe’s Best Kept Secret, FLY TAP crucificado num poste solitário.
Foi neste Verão fantasma que o cachorro em viagem se veio acolher.
Ao alvorecer seguiu jornada rumo ao Norte, precisamente na direcção mais deserta, o que não se compreende tratando‑se dum animal aos sobejos, a menos que algum fio de cheiro urgente o tivesse chamado de longe; e assim deve ter sido porque quando passou pelo pescador ia a trote direito e de focinho baixo a murmurar. Levava destino, isso se via. Logo adiante apressou o passo, entrou em corrida e perdeu‑se nas dunas.
Porém não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das areias a uivar para os fumos que vinham do oceano. Isto, bem entendido, intrigou o pescador que pelo sim e pelo não se dirigiu às arribas, sem que o animal interrompesse um só instante o seu apelo ou o olhasse sequer. E o pescador subindo sempre foi‑se chegando aele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo duma cova uma conspiração de cães à volta do cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu mas logo retomaram a presa; outros nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto.
Há aqui uma certa ironia, diz o inspector Otero da Polícia Judiciária. Segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães.